- Author, Daniel Lisboa
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
Além das fortes chuvas, que já deixaram ao menos 162 mortos e mais de 580 mil desalojados, o Estado enfrentou estiagem, ciclones extratropicais e tornados de um ano para cá.
São tantos eventos meteorológicos em tão pouco tempo que às vezes fica difícil acompanhá-los e entender suas causas e particularidades.
Para ajudar o leitor, a BBC preparou um glossário dos principais fenômenos.
Estiagem
O Estado que hoje enfrenta as maiores enchentes de sua história sofria com a estiagem há um ano.
A estiagem é um período longo sem chuvas ou com poucas precipitações.
Em março de 2023, 356 municípios gaúchos tinham decretado situação de emergência por conta da falta de chuvas.
O cenário era tão grave que o governo federal liberou R$ 430 milhões para uma série de ações emergenciais.
El Niño e La Niña
O Rio Grande do Sul é um dos Estados mais afetados pelos fenômenos El Niño e La Niña.
O primeiro é caracterizado pelo aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico em sua porção equatorial.
É uma grande “língua” de águas mais quentes que o normal que começa na costa da América do Sul e se estende por um vasto trecho oceano adentro.
A La Niña é o fenômeno oposto: as águas superficiais da porção equatorial do Oceano Pacífico ficam mais frias do que o normal.
Em maior ou menor grau, essas mudanças da temperatura do mar influenciam a circulação atmosférica de diversas regiões do planeta, impactando seus regimes de temperatura e precipitações.
No caso do Rio Grande do Sul, o impacto é evidente: em regra, o Estado tem chuva abaixo do normal em anos de La Niña e chuvas acima do normal quando o El Niño se estabelece.
As tragédias que o Estado tem enfrentado deixam muito claros os impactos dos fenômenos.
A estiagem que castigava o Estado até o começo do ano passado era, em grande medida, resultado de quase três anos seguidos de La Niña. Depois, ao longo de 2023, o El Niño se formou e o cenário se inverteu.
Embora o El Niño esteja em seus últimos momentos no Oceano Pacífico, o fenômeno continuou influenciando a atmosfera agora em maio. Tanto que a tragédia do Rio Grande do Sul tem, como afirma a Metsul, as “impressões digitais” do El Niño.
Uma reportagem do instituto de meteorologia gaúcho explicou que, muitas vezes, o fenômeno causa um período de chuva excessiva justamente no outono do ano seguinte ao seu início.
Bloqueio atmosférico
Ao mesmo tempo em que o Rio Grande do Sul fica debaixo d’água, o Sudeste e o Centro-Oeste do país sofrem com temperaturas altíssimas para o mês de maio.
Até o dia 15, as temperaturas máximas na cidade de São Paulo estavam por volta de 7 graus acima do normal. Uma sequência de dias com temperaturas de trinta graus ou mais no meio do outono é absolutamente excepcional e fez os paulistanos sentirem que estão em janeiro ou fevereiro.
Mas o que isso tem a ver com as chuvas no Rio Grande do Sul?
Pode-se dizer que tudo. O calor persistente no centro do país é causado por uma forte área de alta pressão atmosférica.
É uma espécie de “domo” que inibe a formação de chuvas, impede as frentes frias de avançarem e deixa grande parte da umidade bloqueada no Rio Grande do Sul.
Essa situação levou à formação de diversos fenômenos que causaram a chuva abundante no Rio Grande do Sul.
“Ao longo deste período de bloqueio, tivemos uma área de convecção em formato de ‘V’, uma frente fria e uma área de baixa pressão”, diz Estael Sias, meteorologista da Metsul.
“O Rio Grande do Sul ficou espremido entre o ar quente do centro do país e o ar polar que não consegue subir. Essa zona de contraste fica produzindo sucessivos fenômenos que despejam água sobre o Estado”, explica a meteorologista.
Outro fenômeno muito importante relacionado ao bloqueio é o Jato de Baixos Níveis, ou JBN. Trata-se de um corredor de vento que leva o ar quente do norte da América do Sul para as latitudes mais altas como as do Rio Grande do Sul.
Como o calor serve de “combustível” para tempestades, é comum que as regiões sob a influência do jato sofram com tempo severo.
O problema é que esse jato costuma ondular, o que não vem acontecendo: tem ficado praticamente parado sobre o Estado gaúcho.
“O JBN é um veículo de transporte de umidade e ar quente. Ele contribui para a formação de ciclones, frentes frias e o tipo de instabilidade que enfrentamos”, diz Estael.
“Instabilidades que dão origem a tornados também têm conexão com o fenômeno. Para o Rio Grande do Sul, o JBN geralmente está relacionado com eventos extremos”, explica a meteorologista.
“Quando uma frente fria consegue avançar, o vento sul passa a predominar. Tem geada, frio e o JBN acaba se dissipando.”
Outro fenômeno que aparece com frequência no noticiário é o ciclone extratropical.
Comuns na costa brasileira, em especial na da região Sul, os ciclones extratropicais são áreas de baixa pressão atmosférica que formam nuvens carregadas.
Seus ventos, no Hemisfério Sul, giram no sentido horário. Podem causar muita chuva e vento forte, mas não têm o mesmo potencial destrutivo dos furacões.
Em linhas gerais, o fenômeno é formado pelo contraste entre o ar quente e o ar frio. Esse contraste leva a uma mudança da pressão atmosférica.
Quando o índice está muito baixo, a umidade que está na superfície vai para a atmosfera e forma grandes nuvens.
Não é à toa que o Estado gaúcho é tão afetado pelos ciclones extratropicais. O Rio Grande do Sul se encontra justamente em uma zona geográfica de transição, com encontros frequentes de sistemas polares com tropicais.
Mesmo assim, a recorrência do fenômeno foi surpreendente em 2023. Diversos deles se formaram ao longo do ano.
O mais significativo, em junho, deixou um rastro de destruição: de acordo com a Metsul, pelo menos 15 pessoas morreram e 4,3 mil pessoas ficaram desalojadas.
O nordeste do Estado, incluindo a Grande Porto Alegre, foi a região mais afetada, com volumes de chuva que chegaram a 350 mm em poucas horas.
Ciclone subtropical
Muito menos frequente na costa brasileira, o ciclone subtropical difere do extratropical pela temperatura de seu centro: enquanto a do primeiro é mais quente que a da atmosfera ao seu redor, a do ciclone extratropical é mais fria.
Outra diferença é que o fenômeno não está associado às frentes frias, como ocorre com os extratropicais.
O ar em seu interior também se movimenta no sentido horário. Por ser um fenômeno anômalo e atípico, costuma receber um nome quando sua formação é confirmada.
A última vez que isso aconteceu foi em fevereiro deste ano, quando o ciclone subtropical Akará passou, sem causar danos, ao largo do litoral do Sul e Sudeste do Brasil.
O que o Akará teve de mais interessante foi o fato de que, por um breve período, ele se tornou uma tempestade tropical, quando há vento sustentado de 63 km/h a 118 km/h. É o estágio que antecede o do furacão.
Tornado
Outro fenômeno relativamente comum no Rio Grande do Sul é o tornado. O mais recente foi registrado na zona rural da cidade de Gentil, no norte do Estado.
Aqui, novamente a posição geográfica do Estado, com suas constantes interações entre massas de ar quente e massas de ar frio, favorece a ocorrência do fenômeno.
Você muito provavelmente já viu imagens de um tornado: é aquele “funil” que se forma em nuvens carregadas e desce até tocar o solo. Pode ter um alto potencial destrutivo a depender de sua intensidade, que vai de 0 a 5 na escala Fujita.
Os mais fortes chegam a ter ventos de 400 quilômetros por hora. Os tornados, porém, duram pouco tempo, em regra alguns minutos, e afetam uma área relativamente pequena, normalmente de alguns poucos quarteirões ou quilômetros.
“Os tornados fazem parte da nossa climatologia”, diz Estael. “Tem uma estatística que diz que a cada 100 tempestades no estado, uma tem potencial de virar tornado. Então, não tem a frequência dos Estados Unidos, por exemplo, mas não é algo anormal.”
Geada
Apesar de o inverno de 2023 ter sido fraco, com temperaturas acima do média, o Rio Grande do Sul registrou alguns eventos de geada. Mas o que fugiu do padrão mesmo foram as geadas ocorridas em pleno mês de dezembro.
No dia 27, diversas localidades do Estado e de Santa Catarina amanheceram com temperaturas abaixo de 5°C.
A geada se forma quando há o congelamento do orvalho. Ou seja, nada tem a ver com precipitação: a geada não “cai” de nuvens, e sim se forma sobre a superfície.
Do ponto de vista da climatologia, a geada em dezembro foi “bizarra”, segundo Estael.
“Mas essa [bizarra] é uma palavra que temos usado bastante quando falamos de fenômenos climáticos nestes últimos meses”, alerta Estael.
“Lembro de uma palestra em que nós da Metsul mencionamos que, ano passado, todos os oceanos estavam mais quentes que o normal e isso nos levava a um terreno desconhecido para prevermos eventos extremos. Não imaginávamos o que viria nos próximos meses como consequência do aquecimento dos oceanos””, diz a meteorologista.
“Acho que isso é parte da resposta sobre o porquê de tantos eventos extremos. A atmosfera tenta buscar um equilíbrio, quantos fenômenos extremos ela vai ter que gerar para conseguir isso?”