- Author, Amanda Mont’Alvão Veloso
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
Em seus 20 anos de experiência clínica, a psiquiatra americana Anna Lembke percebeu que cada vez mais pacientes chegavam aos consultórios e hospitais com um quadro de dependência dos medicamentos que haviam sido prescritos para tratar de suas dores físicas ou sofrimento mental.
Em outras palavras, o que era oferecido como uma solução acabava se tornando um grave problema a longo prazo.
Os relatos que Lembke ouviu no consultório são apenas um pequeno recorte de um problema muito maior nos Estados Unidos.
O país enfrenta uma epidemia de drogas prescritas, que afeta, em especial, os mais jovens.
A partir de relatos de pacientes e de seus familiares, pesquisas científicas e entrevistas com profissionais de saúde, administradores de hospitais, jornalistas e farmacêuticos, entre outros, Lembke, que é chefe da Clínica de Medicina de Adicção de Duplo Diagnóstico de Stanford, escreveu Nação Tarja Preta (Editora Vestígio), que chega ao Brasil após o sucesso de seu livro anterior, Nação Dopamina, pela mesma editora.
O novo livro de Lembke ajuda a entender as consequências dos atuais modelos de cuidado com a saúde, sejam públicos ou privados.
Segundo ela, pouco tempo para consultas, aumento indiscriminado da disponibilidade de medicamentos, falta de acompanhamento de seus usos, educação deficiente no entendimento dos riscos de dependência e influência do marketing nas prescrições configuram um sistema que precisa ser revisto.
“A escolha da prescrição não é motivada principalmente pela ciência médica, mas, sim, pela influência da indústria, muitas vezes de forma oculta”, diz ela, em entrevista por telefone, à BBC News Brasil.
O acesso a medicamentos nos EUA é mais fácil se eles são do tipo não controlados, que respondem pela maioria das prescrições.
Já os medicamentos controlados são aqueles que apresentam risco de dependência.
O problema, segundo Lembke, é que uma droga não controlada “pode passar a ser controlada se, ao longo do tempo, seu potencial de adicção vier à luz”, adverte em seu livro, citando o analgésico tramadol, aprovado para uso não controlado em 1995 e reclassificado como medicamento controlado em 2014.
O cenário analisado é o dos EUA, mas, no prefácio da edição brasileira, Lembke demonstra que precisamos aprender com os erros dos americanos.
Entre 2009 e 2015, a comercialização de opioides (potentes analgésicos que aliviam a dor) prescritos aumentou 465%, ao mesmo tempo em que aumentaram também os investimentos no marketing de medicamentos relacionados.
As maiores altas foram vistas nas vendas de codeína, oxicodona e fentanil.
Lembke se mostra cautelosa em não estigmatizar o uso e a aplicação de medicamentos controlados e direciona sua crítica ao modo como o sistema funciona, em que os comprimidos prescritos com a boa intenção de aliviar uma condição acabam se tornando fatais aos pacientes que se tornam dependentes.
“Mais importante ainda, por que continuamos prescrevendo e consumindo essas drogas perigosas, mesmo sabendo disso?”, questiona ela, em Nação Tarja Preta.
Confira os principais trechos da entrevista de Lembke à BBC News Brasil.
BBC News Brasil – Em seu novo livro, a senhora argumenta que a dependência de substâncias não é um problema individual, mas sim, uma questão de saúde pública. De que maneira fatores sociais, econômicos e culturais participam do quadro atual do vício e o que pode ser feito para contorná-lo?
Anna Lembke – Existem muitos fatores de risco para a adição (nome técnico do vício) e eles podem ser divididos nas categorias genética, educação e entorno.
“Genética” refere-se ao risco genético, isto é, à vulnerabilidade biológica inata de um determinado indivíduo ao transtorno por uso de substâncias.
Mas a “educação” e o “entorno” estão claramente no domínio da saúde pública, incluindo fatores de risco para a dependência relacionados com a pobreza, o desemprego, o trauma multigeracional, a mobilidade social e o simples acesso às drogas.
Se você mora em um bairro onde as drogas são vendidas na esquina, é mais provável que você as experimente e que fique viciado nelas.
Assim, as intervenções para abordar a dependência devem abordar não apenas os fatores de risco individuais, mas também os fatores de risco ecológicos, ou seja, todas as formas como o mundo moderno conspira para nos transformar em dependentes.
BBC News Brasil – Muitas pessoas dizem que nunca seriam dependentes de drogas, mas a senhora descobriu que milhares desenvolveram vício em medicamentos prescritos, o que pode ser fatal. A senhora acha que os médicos têm consciência da influência deles na prescrição de determinado medicamento aos seus pacientes?
Lembke – A maioria dos médicos tem pouca formação sobre o transtorno por uso de substâncias de forma mais ampla e, em particular, sobre o potencial de dependência dos medicamentos que prescrevem.
Eles não sabem como monitorar o uso indevido de medicamentos prescritos, como conversar com os pacientes sobre este tipo de uso ou o que fazer se detectarem que seus pacientes se tornaram viciados em medicamentos que receitam.
O lado positivo da epidemia de opioides é que hoje os médicos nos EUA têm recebido mais educação sobre o uso indevido e a dependência de medicamentos prescritos, e os jovens médicos de hoje são muito mais cautelosos na prescrição de remédios potencialmente aditivos.
BBC News Brasil – Em sua visão, o que motiva os médicos a prescreverem determinados medicamentos aos seus pacientes?
Lembke – Pacientes imaginam que a decisão dos seus médicos de prescrever um medicamento específico se baseia puramente na tomada de decisão médica, mas, na verdade, há muitos fatores que influenciam a escolha que pouco têm a ver com o que é melhor para o paciente.
A promoção do medicamento pelos fabricantes e outros integrantes da cadeia de abastecimento farmacêutico tem enorme influência na forma como os médicos escolhem o que vai ser prescrito.
Esse impacto sobre os clínicos pode nem ser percebido. Eles recebem muito material promocional que vem com o discurso da ciência, mas que, na verdade, contém mensagens falsas e enganosas sobre segurança e eficácia.
Até mesmo um brinde aparentemente simples como uma caneta, chapéu ou xícara de café pode influenciar a prescrição.
Além disso, os pacientes também são bombardeados com publicidade direta ao consumidor sobre medicamentos, por isso vão aos médicos solicitando determinados nomes.
Nos Estados Unidos, a indústria farmacêutica também tem enorme influência no custo e na disponibilidade dos medicamentos, promovendo alguns em detrimento de outros, independentemente da evidência médica.
Em outras palavras, a escolha da prescrição não é motivada principalmente pela ciência médica, mas sim pela influência da indústria, muitas vezes de forma oculta.
BBC News Brasil – Quais são os segmentos da sociedade mais suscetíveis de serem tratados com medicamentos prescritos?
Lembke – Se você está perguntando quais pacientes têm maior probabilidade de receber prescrição de opioides para dor crônica, então seriam pessoas com doenças mentais e pessoas que vivem na pobreza.
As mulheres são mais propensas a receber prescrição de benzodiazepínicos do que os homens.
É mais provável que os brancos nos Estados Unidos recebam prescrição de opioides para a dor, já que o preconceito racial inconsciente faz com que os médicos suspeitem mais que os negros e pardos pratiquem uso indevido e diversão.
BBC News Brasil – Um dos pontos mais preocupantes discutidos em seu livro é que a dependência de medicamentos controlados vem a partir do acesso às prescrições médicas, mesmo que bem-intencionadas. No momento estamos caminhando para uma intensificação do uso da IA (inteligência Artificial) nos atendimentos de saúde. Existe risco deste quadro de dependência piorar, considerando que as prescrições possam vir a partir de protocolos sem a presença humana?
Lembke – Os protocolos de IA são tão inteligentes quanto a alimentação de seus dados [os chamados inputs, em inglês, “entradas”].
Se informações úteis forem inseridas em um algoritmo de IA, elas terão o potencial de ajudar os médicos a rastrear e intervir no uso indevido e na dependência de medicamentos prescritos, ao mesmo tempo em que eliminam alguns dos preconceitos dos quais os humanos são vítimas.
Por outro lado, uma ferramenta de IA mal concebida e com entradas defeituosas pode piorar a situação.
BBC News Brasil – No prefácio da edição brasileira, a senhora argumenta que a confiança que depositamos em pílulas para curar o sofrimento humana não considera os custos deste uso em longo prazo, nem o fato de que estas mesmas pílulas podem agravar a condição de saúde do paciente ao longo dos anos. Quão importante é o fator “tempo” neste debate?
Lembke – O sistema de saúde nos EUA é quase inteiramente concebido em torno de soluções rápidas, que geralmente têm efeito contrário à saúde dos pacientes com o passar do tempo.
Precisamos criar sistemas de tratamentos que priorizem a saúde a longo prazo, em vez da ajuda e do lucro a curto prazo.
Isso deve incluir dar aos médicos tempo para dialogar e educar os pacientes, e construir relacionamentos com eles ao longo do tempo, permitindo as conversas difíceis que às vezes são necessárias para a melhoria da saúde de quem busca o cuidado.
BBC News Brasil – Além disso, a senhora acha que nós, como sociedade, estamos dando tempo suficiente a nós mesmos quando se trata de passar por situações difíceis na vida?
Lembke – Em geral, a cultura moderna promove a velocidade.
Mesmo o luto em resposta à perda de um ente querido é agora considerado uma doença mental, para a qual existe uma categoria diagnóstica no DSM [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicação de referência para os tratamentos psiquiátricos], embora o luto esteja entre as respostas humanas mais normais e saudáveis.
A cultura ocidental moderna, em particular, tem pouca tolerância ao sofrimento.
Pessoas tristes são vistas como doentes, e não como seres humanos saudáveis, envolvidos na complexa proposta de navegar pela vida.
BBC News Brasil – Quais são os cuidados que médicos e pacientes devem adotar no uso de medicamentos prescritos para tratamentos de saúde mental?
Lembke – As decisões sobre medicamentos devem fundamentalmente considerar uma análise de custo-benefício: os benefícios superam os danos?
Todos os medicamentos têm efeitos colaterais potenciais.
Quando o sofrimento do indivíduo não pode ser aliviado de nenhuma outra forma, e quando os benefícios potenciais de um medicamento parecem superar seus riscos, então tentar tomá-lo faz sentido.
Uma vez iniciado o medicamento, o médico e o paciente devem avaliar continuamente os riscos e benefícios, pois estes podem mudar com o tempo.
Um medicamento que inicialmente é útil pode tornar-se prejudicial com o uso prolongado.
Se e quando os efeitos adversos excederem os benefícios, a medicação deve ser descontinuada de forma compassiva e humana.
Essa avaliação de riscos e benefícios deve incluir mais do que o relato subjetivo do paciente.
Deve incluir também exames laboratoriais, o que os membros da família observam sobre o paciente e outros dados objetivos.
Os próprios pacientes, especialmente quando se tornam adictos a um medicamento, podem ver benefícios mesmo quando estes não existem.
BBC News Brasil – Ao mesmo tempo, ainda existe um estigma em torno do uso de medicamentos desse tipo. Como podemos dosar acessibilidade e conscientização?
Lembke – Sou grata por existirem medicamentos psicotrópicos para prescrever aos meus pacientes. Em alguns casos, eles podem salvar vidas.
Ao mesmo tempo, devemos ter cuidado ao prescrevê-los em excesso, especialmente quando têm potencial para causar dependência.
Podemos estigmatizar práticas médicas inadequadas sem estigmatizar os próprios medicamentos.
BBC News Brasil – Na sua análise, quando foi que medicamentos prescritos para tratamentos como ansiedade, insônia, depressão e falta de foco passaram a ser consumidos de forma massiva e acrítica?
Lembke – Essa onda começou na década de 1970 com a promoção do Valium como “ajudante das mães” e tem aumentado desde então, incluindo a prescrição de psicotrópicos a crianças cada vez mais novas, incluindo crianças com apenas dois anos.
BBC News Brasil – E em que momento os tratamentos de saúde mental passaram a ser tão associados ao uso de medicamentos prescritos?
Lembke – A década de 1990 foi a chamada “Década do Cérebro”, quando a psiquiatria se afastou decisivamente da psicoterapia (e de uma abordagem mais holística da saúde mental) e passou a adotar os medicamentos como solução para todas as formas de sofrimento psicológico.
BBC News Brasil – Qual sua avaliação sobre o uso da cannabis e de medicamentos psicodélicos para tratamentos de saúde mental?
As evidências sobre psicodélicos são muito preliminares para serem confiáveis, especialmente por conta da subnotificação sistemática dos danos provocados.
Por esse motivo, não recomendaria nenhum dos dois aos meus pacientes, pelo menos não sem evidências mais robustas de segurança e eficácia.