A proposta, porém, só será implementada se for aprovada também na Câmara dos Deputados, e o presidente da Casa, Arthur Lira, tem sinalizado que vai segurar o andamento da pauta.
A mudança foi uma reposta a críticas sobre o excesso de decisões monocráticas que vinham não só de políticos, mas também da academia jurídica.
Antes dessa alteração regimental, ministros podiam suspender individualmente uma lei aprovada no Congresso por tempo indeterminado, por exemplo. Hoje, decisões provisórias individuais dos ministros precisam ser levadas imediatamente ao plenário da Corte.
A mudança regimental também fixou um prazo de 90 dias para pedidos de vista (quando o ministro interrompe um julgamento para analisar melhor o caso). Isso evita que casos importantes sejam suspensos por tempo indefinido, como ocorria antes.
Já a PEC aprovada no Senado amplia essas restrições ao proibir totalmente decisões individuais que suspendam a eficácia de leis ou atos do presidente da República e dos presidente do Senado e da Câmara dos Deputados.
A proposta também prevê no máximo dois pedidos de vista por julgamento com prazos de seis meses e de três meses, respectivamente – e estabelece que a ação volte a pauta do STF imediatamente ao fim do prazo, o que reduziria o poder do presidente da Corte, atualmente Luís Roberto Barroso, de marcar a nova data..
No entanto, ainda que a PEC tenha impacto limitado caso entre em vigor, os especialistas ouvidos pela reportagem consideram que a aprovação da proposta neste momento é uma forma de o Senado passar “um recado” para o Supremo conter sua atuação em pautas que desagradam a maioria conservadora do Congresso, como julgamentos que debatem a descriminalização do aborto e do porte de drogas para consumo ou a proteção de direitos indígenas frente a interesses ruralistas.
O cientista político da Tendências Consultoria Rafael Cortez acredita que “novos rounds desse jogo podem aparecer a depender do como o Supremo for responder a essas ações (do Senado)”.
Ele ressalta que o embate com a Corte pode gerar dividendos políticos para candidatos da direita. O país terá eleições municipais em 2024 e muitos parlamentares costumam concorrer para cargos de prefeito ou apoiar aliados nessas disputas locais.
“Se eventualmente o Supremo Tribunal Federal não organizar melhor sua agenda, vai ser objeto de novas movimentações (do Congresso)”, acredita Cortez.
“O movimento conservador se voltou contra o Supremo, então, acenos nessa direção geram dividendos políticos para quem está concorrendo (eleitoralmente) no âmbito da direita”, reforça.
Próximas batalhas?
Há outras medidas em debate no Congresso que batem de frente com o STF. Uma delas, inclusive, está em tramitação avançada na Comissão de Constituição de Justiça e pode ir a plenário ainda este ano. Trata-se de uma PEC para inserir na Constituição a criminalização do porte de drogas.
A proposta é uma reação à possibilidade de o Supremo derrubar a criminalização do porte de maconha para consumo. Esse julgamento foi interrompido com um placar de 5 a 1 a favor da liberação, ou seja, falta apenas um voto para que a posse dessa substância deixe de ser crime.
Outra PEC em tramitação ainda inicial no Senado tenta alterar a forma de indicação dos próximos integrantes da Corte e criar mandatos de até quinze anos para os ministros — hoje eles podem exercer o cargo até os 75 anos.
“De certa forma, (a PEC que limita decisões individuais) é o primeiro passo dessa crise”, afirma Wallace Corbo, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
“Quer dizer, uma primeira medida de baixa repercussão prática já é uma primeira mensagem que o Congresso manda para o Supremo”, avalia Corbo. Para ao professor, “o Congresso vai responder a eventuais decisões dos ministros, seja fixando mandato (para os ministros), seja constitucionalizando posições contrárias as posições que o Supremo avalize”.
Segundo Corbo, há propostas bem mais controversas em debate no Congresso, como a ideia de aprovar uma PEC que autorizaria o Congresso a anular decisões do STF. Essa medida, porém, não aparece com força para ser colocada em votação no momento.
“A possibilidade de o Congresso suspender decisões judiciais é própria de regimes autoritários. Isso estaria muito além do que é permitido no Estado Democrático de Direito. Já a limitação da atuação individual de ministros é algo razoável”, avalia.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tem defendido as propostas em debate no Congresso como formas de “aprimorar” o funcionamento do Judiciário.
“A PEC das decisões monocráticas é algo tecnicamente muito aconselhável porque significa dizer que uma lei votada nas duas casas do Legislativo, e sancionada pelo presidente da República, pode ser declarada constitucional a partir do Supremo Tribunal Federal por sua força colegiada e não por uma decisão isolada de um ministro”, afirmou, na véspera da proposta ser aprovada no Senado.
“Então, eu considero algo adequado sob o ponto de vista jurídico, sob o ponto de vista político e para a preservação institucional da boa relação entre os Poderes”, prosseguiu.
Presidente do STF, Barroso adotou postura cautelosa
A tensão entre Supremo e Congresso escalou durante a presidência da ministra Rosa Weber no STF, quando a Corte tomou decisões consideradas progressistas que desagradaram a maioria conservadora do Congresso.
Um exemplo foi a decisão de pautar um julgamento que acabou por rejeitar a adoção de um marco temporal para os territórios indígenas. O marco temporal dificultaria novas demarcação de terras e favoreceria interesses do agronegócio em áreas sob disputa.
Depois desse julgamento, o Congresso, que conta com uma bancada ruralista forte, aprovou uma lei instituindo o marco temporal e outras mudanças para a exploração econômica das terras indígenas. Na sequência, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei, mas vetou diversos trechos, incluindo a criação do marco temporal.
“Temos um Congresso conservador com uma Constituição liberal, progressista, e um Supremo mais progressista ainda em matéria de direitos individuais, direitos de minorias”, nota a professora de direito constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Estefânia Barboza.
“Então, o Congresso vai fazer esse jogo de força com o Supremo, porque a gente tem um Congresso que não aceita os direitos constitucionais”, acrescenta.
Após a aposentadoria de Rosa Weber, porém, o novo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, tem adotado uma postura mais cautelosa frente ao Congresso.
O ministro assumiu evitando retomar julgamentos polêmicos que avançaram na gestão anterior, mas foram paralisados por pedidos de vista, como as ações que discutem descriminalizar aborto e porte de drogas para consumo.
“O Supremo parece estar reagindo como os tribunais que se sentem ameaçados tendem a reagir, que é nesse primeiro momento observar o que vai acontecer no Congresso Nacional”, nota Wallace Corbo.
“Então, é difícil que nós vejamos nos próximos dias um Supremo que seja muito ativo contra o Congresso ou na tomada de decisões que sejam vistas como polêmicas, porque nenhum Tribunal Constitucional quer ver as suas decisões desrespeitadas ou quer se ver sob ataque”, analisa o professor.
A expectativa, porém, é que Barroso retome essas ações delicadas em algum momento de seu mandato de dois anos à frente da Corte, nota Corbo, já que o ministro têm uma trajetória marcada pela defesa de pautas progressistas, incluindo posições favoráveis à descriminalização das drogas e do aborto.
O professor ressalta ainda que é próprio das cortes constitucionais, como o STF, atuarem na garantia dos direitos das “minorias políticas” – ou seja, evitar que grupos que não têm força política no Congresso tenham seus direitos restringidos.
“A função da Constituição, talvez a mais básica, é proteger os indivíduos e os grupos sociais, especialmente os indivíduos que são minorias políticas, contra a violação de direitos regulada por maiorias políticas”, afirma.
“Existe uma confiança na comunidade jurídica de que o Supremo não vai passar por esses dois anos de presidência do ministro Barroso sem decidir temas candentes de direitos fundamentais”, afirma. “A marca da trajetória do ministro Barroso é vinculada a essas pautas progressistas de direitos fundamentais”, reforça.