- Author, Mamoon Durrani
- Role, Serviço afegão da BBC
Claramente angustiada, ela se aproximou para ouvir o que o pai dizia a seu irmão mais velho.
“Quando ouvi meu nome, meu coração começou a bater muito forte e comecei a chorar”, diz Nazdana.
O tribunal talebã de sua província natal, Uruzgan, tinha reaberto seu caso, convocando-a novamente para defender seu divórcio de um homem com quem ela nunca nem quis casar.
Quando Nazdana tinha apenas sete anos, seu pai acordou que, quando chegasse à adolescência, ela se casaria com Hekmatullah para resolver uma disputa familiar.
Conhecida como “casamento ruim”, a prática procura transformar um “inimigo” da família em “amigo”.
Quando Nazdana completou 15 anos, Hekmatullah foi buscar “sua esposa” para levá-la para casa. Mas ela imediatamente pediu a separação e eventualmente conseguiu sua liberdade.
“Eu disse repetidas vezes ao tribunal que não estava disposta a me casar com ele”, diz Nazdana. “Depois de cerca de dois anos de batalha, finalmente ganhei o caso. O tribunal me parabenizou e disse: ‘agora você está separada e livre para casar com quem quiser’”.
Em comemoração, houve uma reunião em seu povoado, com comida oferecida a amigos e vizinhos na mesquita local.
O ex-marido, recentemente incorporado aos talebãs, pediu ao tribunal a revogação da decisão do governo anterior. A partir desse momento, Nazdana foi excluída do processo, como prevê a lei islâmica.
“No tribunal, os talebãs disseram que eu não deveria regressar à corte porque ia contra a lei da Sharia. Disseram que, em vez disso, o meu irmão deveria me representar”, diz Nazdana.
“Disseram-nos que caso não concordássemos, entregariam a minha irmã a ele (Hekmatullah) à força”, diz Shams, irmão de Nazdana, de 28 anos.
Apesar dos apelos de Shams ao juiz, afirmando que uma nova decisão colocaria a vida da irmã em sério risco, o tribunal anulou a decisão anterior e decidiu que Nazdana devia voltar ao ex-marido imediatamente.
Nazdana apelou da decisão para ganhar tempo para fugir. E, junto com o irmão, deixou sua cidade natal e escapou para um país vizinho.
Um caso entre muitos
O juiz de Uruzgan não quis falar com a imprensa, mas conseguimos visitar o Supremo Tribunal talebã na capital, Cabul, para buscar respostas.
“Nossos juízes estudaram o caso de todos os ângulos e decidiram a favor de Hekmatullah”, disse Abdulwahid Haqani, assessor de imprensa do Supremo Tribunal.
“A decisão da administração anterior, corrupta, de cancelar o casamento de Hekmatullah e Nazdana, foi contrária à Sharia e às regras do casamento porque Hekmatullah não estava presente no momento da audiência”, disse.
Tentamos obter uma versão de Hekmatullah, mas não conseguimos contactá-lo.
O julgamento de Nazdana é apenas um dos 355 mil casos que o governo talebã afirma ter resolvido desde que assumiu o poder, em agosto de 2021, após uma reforma no sistema judicial que está causando profundo impacto na população.
Os talebãs afirmam que seus juízes linha-dura não só estão fazendo cumprir as leis atuais, como também estão fazendo horas extras para anular decisões anteriores.
Em uma grande força-tarefa, estão sendo oferecidos recursos gratuitos ao público em geral.
Segundo o governo talebã, a maioria dos processos são criminais, cerca de 40% são disputas de terras e mais de 30% são questões familiares, entre as quais está o divórcio.
A BBC não conseguiu verificar os números fornecidos pelo Talebã.
Mulheres no sistema judicial
Ao retornarem ao poder, os talebãs prometeram acabar com a corrupção do passado e fazer “justiça”. Destituíram sistematicamente todos os juízes e declararam as mulheres inadequadas para participar no sistema judicial.
“As mulheres não estão qualificadas ou treinadas para julgar porque, de acordo com os nossos princípios da Sharia, o trabalho judicial exige pessoas com um elevado nível de inteligência”, afirma Abdulrahim Rashid, diretor de Negócios Estrangeiros e Comunicações do Supremo Tribunal Talebã.
Fawzia Amini é uma ex-juíza que foi destituída pelo Talebã. Ela diz que mulheres como Bibi Nazdana deveriam ser protegidas pela lei.
“Se uma mulher se divorcia do marido e os documentos judiciais estão disponíveis como prova, então é definitivo. Os veredictos do tribunal não podem mudar porque o regime muda”, diz Amini.
Amini também diz que a destituição de juízas impede novas proteções legais para as mulheres.
“Desempenhamos um papel importante. Por exemplo, a lei da Eliminação da Violência contra as Mulheres, de 2009, foi uma das nossas conquistas. Também trabalhamos na regulamentação dos abrigos para mulheres, na tutela dos órfãos e na lei contra o tráfico de seres humanos, para citar alguns”.
Depois de mais de uma década trabalhando no topo do sistema jurídico afegão, a juíza Amini viu-se forçada a fugir do país.
Quando o Talebã assumiu o poder, ela conta que começou a receber ameaças de morte dos homens que condenou no passado.
“O nosso código civil tem mais de meio século. Já era praticado mesmo antes da origem dos Talebãs”, diz Amini. “Todos os códigos civis e criminais, incluindo os códigos do divórcio, foram adaptados do Alcorão.”
Os talebãs respondem, agora, que os antigos líderes afegãos simplesmente não eram suficientemente islâmicos.
Sharia
No Supremo Tribunal Afegão, mostraram-nos uma sala onde eram guardadas pilhas de processos judiciais em prateleiras: um pequeno escritório onde funcionários, tanto do governo anterior como os recentemente nomeados pelo Talebã, dividiam o ambiente.
Disseram-nos que a maioria dos casos tinha sido julgada no regime anterior e foram reabertos pelo novo sistema judicial após novos recursos terem sido apresentados.
“Os antigos tribunais tomavam decisões com base num código penal e civil. Mas agora todas as decisões são baseadas na Sharia (lei islâmica)”, diz Abdulrahim Rashid.
O Talebã baseia-se em grande medida no Hanafi Fiqh, uma jurisprudência religiosa que remonta ao século 8 e que foi amplamente praticada em todo o mundo islâmico, como no Império Otomano, e que permanece em vigor até hoje em diferentes países islâmicos.
Desde que fugiu para um país vizinho, Nazdana passou um ano abrigada debaixo de uma árvore, num pequeno pedaço de calçada entre duas estradas movimentadas.
Ela está sentada segurando nas mãos um maço de documentos bem encadernados, a única prova de sua identidade como mulher solteira e livre.
“Bati em muitas portas pedindo ajuda, incluindo a ONU, mas ninguém ouviu a minha voz. Onde está o apoio? Como mulher, não mereço liberdade?”