Nas noites da quaresma, período para os católicos de reflexão até a Páscoa, é possível notar uma procissão de pessoas vestidas com mantos brancos que cruzam a cidade de Juazeiro, no sertão da Bahia. São as “alimentadeiras de almas”, grupo de penitentes, na maioria mulheres, que segue a tradição de rezar pelas almas nas ruas da cidade ribeirinha, a 507 km de Salvador.
O grupo se concentra na casa de Josulene Rodrigues Ribeiro, a Dona Nenenzinha. A tradição se estende desde 1901, sempre nas semanas que antecedem a Páscoa cristã. “Começou com os frades. Depois, passou para uma senhora, até chegar na minha mãe”, conta ela.
Aos 83 anos, a aposentada herdou da família a missão de organizar a procissão. Começa a preparar a alimentação pela tarde e depois acompanha o grupo pelo longo trajeto, que é realizado nas segundas, quartas e sextas-feiras, até a Sexta-Feira Santa, quando a tradição é encerrada com uma ceia.
“Minha mãe me pediu, antes de morrer, para não deixar acabar a tradição e foi assim que eu fiz”, conta, orgulhosa.
À frente do cordão, como chamam os grupos, um dos integrantes carrega uma cruz de madeira. Em fila, os demais o seguem entoando benditos e ladainhas religiosas para pedir a paz das almas do purgatório. O percurso passa por sete cruzeiros espalhados por bairros da cidade, chamados de estações.
A caminhada pelo asfalto divide espaço com carros e motos. O barulho dos motores é cortado pelas batidas da matraca, instrumento de madeira com pedaços de ferro que produz um som forte ao bater, levado pela segunda penitente da fila.
Todo percurso é acompanhado pelos olhos curiosos da população. “Bonito, né”, comenta o vendedor Paulo Silveira, 43, que vê o grupo passar em frente ao seu ponto comercial. “Eles estão rezando pelos mortos”.
Os religiosos seguem até o cruzeiro do cemitério municipal, onde se aglomeram, de joelhos ou escorados na parede. Acendem velas e fazem orações que ecoam por toda vizinhança.
Entre os devotos, tem participante que sai há mais de 35 anos na penitência e alguns jovens que seguem a tradição familiar, por promessa ou por admiração.
Os primeiros registros das penitências no sertão datam do início do século 18, vindo com os religiosos capuchinhos e franciscanos. Os mais tradicionais, que ainda resistem na região, são os disciplinadores, aqueles conhecidos pelo ato do autoflagelo, uma das mais sigilosas manifestações.
Entre as alimentadeiras de almas, há algumas regras como a de sigilo dos membros. Cada ciclo de penitência dura sete anos, que devem ser cumpridos ininterruptamente ou substituído por um parente.
Sete também é o número de nós nos cordões que amarram na cintura das participantes, em referência às sete dores de Maria, expressadas na tradição popular.
A cada ano que passa, lamentam os participantes, o número de cordões diminui. Esse ano, apenas o organizado por Dona Nenenzinha peregrinou por Juazeiro, onde antes circulavam cinco. “Os coordenadores foram morrendo e não tinha ninguém para tomar conta, então foi acabando”, conta ela.
A devota diz que enquanto viver manterá o costume e tem esperanças que continuem após sua partida. “Eu sei que vou morrer um dia. Estou preparando uns três e espero que dê certo. Se não tiver quem tome conta, acaba”.
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